O tal do curupira

       

          Katlin estava indo passar as férias no Brasil, queria conhecer a família paterna que tanto ouvira falar, mas nunca tinha visto de fato. Ainda bem que o pai havia lhe ensinado a língua desde pequena, até a sua mãe falava um pouco de português.

          Anos atrás, Pedro fora fazer intercâmbio na Austrália, conseguira uma bolsa de estudos por ter se destacado em um programa de pesquisa no final do ensino médio. Era o orgulho da família, o único a conseguir viajar para outro continente, o responsável por mudar a história das próximas gerações.

          Depois que conheceu Ava, a mãe de Katlin, o desejo transformou-se numa gravidez inesperada e na ruptura de uma família que não aceitava que os sonhos de uma geração fossem destruídos por causa de um descuido. 

          Com o tempo Pedro fez as pazes com a família, mas nunca sobrava dinheiro para visitá-la. Essa, por sua vez, também era desprovida de bens materiais e atravessar o mundo era muito oneroso para quem trabalhava apenas para se sustentar. 

          As famílias acabaram se acostumando a conversar pela internet e o sonho de conhecer a neta pessoalmente ia sendo adiado, ano após ano. Os pais de Katlin, por não serem de famílias abastadas e nem terem concluído os estudos, já que tiveram que trabalhar para sustentar uma criança, tinham uma vida modesta, vivendo do que o turismo oferecia. Não tiveram outros filhos, mas isso não entristecia a menina que tinha muitos amigos e uma pequena família cheia de amor.

          Enquanto tentava salvar um turista desatento que entrara em águas proibidas, Pedro fora devorado por um tubarão. O turista tentou amenizar a situação, recompensado financeiramente a família de Ketlin, mas a ausência do pai e sua morte trágica nunca foram superadas. 

          Ava resolveu fazer o que Pedro sempre teve vontade e nunca  conseguira: ir para o seu país de origem e apresentar a neta aos avós. Assim, em junho, mãe e filha resolveram embarcar para o Brasil, mais precisamente para o interior da Bahia.

          Depois de quase trinta horas de voo e duas horas de ônibus, chegaram, ao entardecer, em uma cidadezinha chamada Pojuca. Ava e Katlin foram muito bem recebidas pela família de Pedro. Todos eram muito simpáticos e acolhedores.

          Entre beijos, abraços apertados e muitas lágrimas, foram se conhecendo e reconhecendo os traços do filho na neta. Um olhar apertado daqui, um sorriso parecido acolá. A neta era o mais novo xodó da casa e a pré-adolescente já estava sem graça com tantos mimos. 

          Após muita cocada, pé-de-moleque, doce de leite e cansaço das viagens e dos fusos horários, a menina apagou e só acordou no dia seguinte.

          — Você dormiu, hein prima! — falou um dos primos que ela nem conhecia. — Ainda bem que tá de mala pronta pra viajar.

          — Viajar? Como assim? Acabei de chegar! — Ketlin indagou ainda cansada.

          — Nós vamos passar o São João na roça, oxente! — respondeu uma menina quase da mesma idade que ela. — Dá cá um abraço, prima!

          E se jogou em uma Katlin sonolenta que quase caiu com o abraço inesperado. A casa estava cheia de adolescentes e crianças de várias idades. Katlin não tinha uma família grande, apesar de gostar de ver tanta gente, estava sem graça por ser o centro das atenções. 

          — Aposto que tá com fome! — Sua avó já falou lhe estendendo um prato cheio de milho cozido. — Come um pouco antes da gente sair, mas deixa um espacinho no bucho que lá já tem almoço esperando a nossa chegada.

          Katlin não sabia o que era bucho, mas comeu todos os três milhos que a avó lhe ofereceu, e comeria mais se ali tivesse. Assim que acabou, escovou os dentes e se encontrou com a família na frente da porta. Todos, até a sua mãe, estavam em cima de um caminhão. As crianças menores amontoavam-se no chão e os adultos sentavam-se na beirada. Katlin ficou perto dos primos maiores, em pé na parte mais alta da carroceria. A viagem foi uma novidade gostosa, Katlin lembrou de quando andava de Buggy com o pai e aquilo a deixou um pouco triste, mas as gargalhadas dos primos, que lhe ensinavam a “engolir o ar”, lhe arrancaram da nostalgia. Em meia hora chegaram na Embira Branca, um povoado na zona rural de Pojuca. 

          Todos desceram com malas, mochilas e trouxas, iriam ficar para o São João e só voltariam depois do São Pedro. A casa de taipa era aconchegante, espaçosa e cercada de varanda. Na frente  havia um conjunto harmônico de troncos de árvores que se transformaria numa fogueira onde assariam milho e soltariam fogos.

          Depois de almoçar uma bela feijoada, os adultos se jogaram nas redes e esteiras,  e as crianças, nos colchões que estavam espalhados pela varanda. Dona Joana, a matriarca da família, havia pedido que os primos mostrassem as redondezas para Katlin.

          — Já que vocês não conseguem tirar a sesta da tarde, aproveitem e vão mostrar o lugar para a prima de vocês.

          Todos gritaram e saíram correndo.

          — Epa!— gritou a avó.— cuidado com o rio, nada de banho depois do almoço que pode dar indigestão. Agora, xispa!

          Assim que ela se encostou na cadeira de balanço, todos se embrenharam na famosa Mata do Buril.  O local era tão fechado pelas árvores altas e frondosas que mal se viam os raios de sol. Katlin estava feliz entre os primos e por hora se permitiu não pensar no pai e aproveitar o momento.

          Após andar muito, saíram da mata fechada e chegaram em uma clareira. Os olhos de Katlin arderam com a exposição intensa à claridade, nem pareciam que estavam no mesmo lugar. Andaram mais um pouco e chegaram ao rio, claro que todos se jogaram, de roupa e tudo, na convidativa água translúcida. Ao contrário do que a avó dissera, ninguém teve indigestão. 

          Meia hora depois, saíram da água para secar ao sol antes de voltar para casa. 

          — Vamos brincar de esconde esconde? — Sugeriu um dos primos.

          — Onde? — Alguém perguntou.

          — Na mata, onde mais?

          — Katlin, Você que não sabe os melhores locais para se esconder, fica aqui e conta até dez. Depois entra na mata e procura a gente.

          — Então, tá!

          Todos voltaram para a mata enquanto Katlin contava, em voz bem alta ,como lhe foi pedido. Assim que terminou a contagem, ela foi atrás dos primos. Não via criança alguma e o que não faltavam eram árvores onde se esconder. Katlin não sabia, mas havia crianças em cima das árvores, escondidas nos troncos mais largos e até dentro de laranjeiras que plantaram por ali. A tarefa de achar os primos seria praticamente impossível e todos eles sabiam disso.

          Ela ouviu uns risinhos e resolveu seguir os sons. Nada! Depois ouviu estalos de gravetos e teve certeza que ali tinha algum dos pestinhas. Sem perceber, Katlin se afastava dos primos e entrava numa parte da mata que não dava na casa. Nenhuma das crianças via onde ela estava indo, todos estavam escondidos da cabeça aos pés, eram peritos nisso. Nenhuma criança estava fora do esconderijo, mesmo assim ela ouvia sons e foi atrás deles. 

          Katlin olhou seu relógio de pulso e viu que já passava das dezesseis horas, começou a se preocupar, parou de procurar e chamou pelos primos, pelo menos os nomes que ela lembrava.

          — Tiago! Ô Tiago! Aparece, não tem mais graça.

          Ela ouviu novos sons e uma cabeça de cabelos vermelhos apareceu atrás de uma árvore. Ela não se recordava de nenhum primo ruivo, mas eram tantos que seria difícil lembrar de todos. 

         — Um, dois, três visto o ruivo!

          Ele não saiu do esconderijo como determina as regras da brincadeira, pelo contrário, correu mata adentro. Katlin achou o seu andar estranho.

          — Olha aqui sua cabeça de fósforo, não é legal o que está fazendo. — Ela sabia que não era legal ofender as pessoas com apelidos pejorativos, mas estava com muita raiva para pensar racionalmente sobre isso. — Volte aqui, seu ridículo!

          Ele não pareceu ligar para ela, pois continuou correndo até sumir. Ela parou para descansar até que ouviu assobios em outra direção e resolveu partir para lá, não queria mais achar o primo da cabeleira vermelha, ele não sabia brincar. Ficou surpresa ao ver que o mesmo menino que  havia assobiado, era o que há pouco lhe atordoara. Ele deu língua para ela e continuou a correr. Ela estava visivelmente cansada e irritada. Olhou novamente para o relógio e mais uma hora havia se passado e sem que ela percebesse. Resolveu parar de procurar os primos, preferiu encontrar a saída da floresta. Tinha que voltar para casa antes que escurecesse mais. Andou mais um pouco e ouviu um grito, parecia que estavam chamando o seu nome. 

          — Aqui! Eu estou aqui! — Katlin gritou a plenos pulmões. — Eu não quero mais brincar! 

          Continuou ouvindo os chamados e seguiu nessa direção, no meio do caminho, curvou o corpo com as mãos apoiadas nos joelhos, estava cansada demais. Ouviu um estalo perto dela e quando levantou o rosto deu de cara com o menino pequeno, peludo, de cabelos vermelhos e com os pés para trás. Definitivamente, aquele menino não era nenhum dos seus primos e era muito estranho. Quando pensou em gritar, seus sentidos falharam e ela desmaiou.

          Acordou com o balanço e percebeu que estava sendo carregada por alguém, quando olhou para o rosto dele, viu o seu pai.  Começou a chorar.  Ele parou, colocou-a no chão e enxugou  as primeiras lágrimas que ela derramara. Depois ele se afastou e começou a andar. Katlin chamou-o com os braços estendidos e ficou assim até ele sumir de vista. A menina não sabia por quanto tempo ficara sentada chorando, mas despertou quando viu luzes e ouviu pessoas gritando o seu nome. Assim que levantou o rosto, avistou sua mãe e correu para abraçá-la. Vários adultos segurando candeeiros acesos estavam em volta dela. A avó foi logo dizendo que era o tal do curupira.

          — Oxe mainha, pare com isso! — repreendeu uma de suas tias. — Por essas e outras que chamam a gente de caipira.

          — O que é o curupira? — Katlin perguntou enquanto enxugava o rosto.

          — Vamos lá pra casa que te conto essa história enquanto comemos uma canjica. — D. Joana respondeu animada.

          — E assamos milho na fogueira! — Um dos primos lembrou logo. 

          Assim, todos foram para casa enquanto Katlin andava olhando para trás. Ela tinha certeza que aquilo não fora um sonho e pelo olhar que a avó lhe dava, ela sabia onde encontrar as respostas.